As epístolas cabo-verdianas: interferências e (des)encontros entre o português e o cabo-verdiano

By Maria da Graça Gomes de Pina (Università di Napoli "l'Orientale", Italy)

Abstract

English:

Following Teixeira de Sousa’s advice, in response to Michel Laban’s interview, I think that addressing the letters written before the Independence of Cape Verde in 1975 may be a valid way of verifying the linguistic interference of Portuguese in written Cape Verdean creole. For this reason, we would like to analyze two epistles published in the novel Chiquinho (1947) by Baltasar Lopes and compare them with other letters written by Cape Verdean creole speakers who only have primary compulsory education and who were born between the 1920’s and the 1940’s. There are quite obvious examples of linguistic interference and grammatical overlap. This can be seen in the sentences that Baltasar Lopes recreates in his novel. Those sentences do not show the ungrammatical use of Portuguese that was defended and applied by the translators of the novel in their respective languages. In this way, we intend to verify to what extent the minimal notions of elementary written Portuguese have interfered or still interfere in the writing of brief texts with a mere communicative intention. Such linguistic interference will possibly show the high degree of the Creole substrate in the writing of Portuguese language.

Portuguese:

Seguindo o conselho de Teixeira de Sousa, em resposta à entrevista feita por Michel Laban, penso que debruçarmo-nos sobre as cartas escritas antes da Independência de Cabo Verde, em 1975, pode ser uma forma válida de verificação da interferência linguística do português no crioulo cabo-verdiano escrito. Por esse motivo, gostaríamos, pois, de analisar duas epístolas publicadas no romance Chiquinho (1947) de Baltasar Lopes e de compará-las com outros exemplares de cartas escritas por falantes de crioulo cabo-verdiano que possuem apenas a escolaridade obrigatória primária e que nasceram entre os anos 20 e 40 do século XX. Existem exemplos bastante evidentes de interferência linguística e de sobreposição gramatical. Isso vê-se nas frases que Baltasar Lopes recria no seu romance, fazendo-nos ver não uma agramaticalidade do português, como os tradutores do romance defendem e aplicaram nas respetivas línguas. Deste modo, propomo-nos verificar até que ponto as noções mínimas do português escrito elementar interferiram ou interferem ainda hoje na redação de breves textos com mera intenção comunicativa. Tal interferência linguística mostrará o grau elevado, ou não, do substrato crioulo na redação do português.

Keywords: crioulo, tradução, interferências, Chiquinho, epístolas, criol, interference, epistle

©inTRAlinea & Maria da Graça Gomes de Pina (2019).
"As epístolas cabo-verdianas: interferências e (des)encontros entre o português e o cabo-verdiano"
inTRAlinea Special Issue: Le ragioni del tradurre
Edited by: Rafael Lozano Miralles, Pietro Taravacci, Antonella Cancellier & Pilar Capanaga
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Que nenhum idioma nos proclame ilhéus de nós próprios

(Conceição Lima)

Quando o heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, afirmava no Livro do desassossego que «minha pátria é a língua portuguesa» (1982: 16), não estava certamente a pensar em formas linguísticas cuja promoção social se pautava pela dignificação e a aceitação políticas. O que Bernardo Soares fazia era traduzir poeticamente o que ele considerava ser um sentir e uma afeção próprios da alma do ‘seu’ povo.

Bem diverso, porém, é o sentir de Chiquinho – protagonista do romance homónimo (1947) da autoria de Baltasar Lopes –, um sentimento cuja explicitação afetiva, de certa forma, se revelará na prática uma antítese da afirmação de Bernardo Soares. Com isto quero apenas dizer que a certa altura, em Cabo Verde, a língua portuguesa, ao impor-se como mãe-pátria, em alguns casos acabou por transformar-se em ‘pátria-madrasta’. E este desdobramento quase esquizofrénico de sentires, em que a língua desempenha o papel de ‘enformador social’, isto é, aquele veículo por meio do qual o indivíduo se promove socialmente, encontra-se presente sobretudo na forma como este deveria entrar em contato com o seu semelhante, como deveria dirigir-se a ele até mesmo na forma escrita. Portanto, é evidente que a língua portuguesa só pode servir de trampolim para atingir um escalão social mais elevado quando o ‘atleta linguístico’ que dele se serve não o possui ou não o usa diariamente, isto é, quando não dispõe dele como de um instrumento próprio e caseiro.

Todavia, convém clarificar primeiro dois aspetos: 1) que me estou a referir a indivíduos que nasceram no início do século xx; e 2) que os mesmos não tiveram acesso à escolaridade total, pois pertenciam a uma classe social desfavorecida que, na maioria dos casos, vivia distante do centro urbano das ilhas.

Assim sendo, e aproveitando uma sugestão do médico e ficcionista Henrique Teixeira de Sousa em resposta à entrevista que lhe fez Michel Laban (1992 vol. i: 179), penso que debruçarmo-nos sobre as cartas escritas antes da Independência de Cabo Verde, em 1975, pode ser uma forma válida de verificação da interferência linguística do português no crioulo cabo-verdiano escrito.

Proponho-me, portanto, fazer o seguinte: 1) analisar uma epístola publicada no romance Chiquinho de Baltasar Lopes; 2) compará-la posteriormente com outros exemplares de cartas escritas por falantes de crioulo cabo-verdiano que possuem apenas a escolaridade primária e que nasceram entre os anos 20 e 40 do século XX, para deste modo verificar até que ponto as noções mínimas do português escrito elementar interferiram ou interferem ainda hoje na redação de breves textos com mera intenção comunicativa (tal interferência linguística mostrará o grau elevado, ou não, do substrato crioulo na escrita do português). Por último, 3) mostrar que a escolha dos tradutores francês e italiano é a de optarem pela simplificação na tradução desse registo linguístico, embora com direções divergentes.

Antes, porém, de passar a este exame, é mester que gaste algumas linhas sobre o contexto histórico-social em que tal obra se insere. Em primeiro lugar, diria que Chiquinho é um romance híbrido, quer dizer, é um texto onde se detetam os traços de um casamento linguístico, numa espécie de união de facto de certo modo premeditada e programada. É o seu autor a afirmar que, quando construiu a sua linguagem romanesca, queria verificar como o indivíduo ‘crioulizante’, ‘crioulófono’, se realizaria ao falar em português (Laban 1992 vol. I: 49). Por conseguinte, um dos propósitos do romance é exatamente provar, tentar encontrar, uma espécie de linguagem que dê conta dessa mestiçagem numa realidade já por si mestiça.

Fazendo minhas as palavras de Margarida Fernandes:

entende-se que toda a obra literária é um objecto cultural. Embora de formas diversificadas, em estilo e forma, um autor de ficção, inserido num dado contexto geográfico, político, económico, social e cultural, por nascimento ou por opção, reflecte nas suas obras, quase inevitavelmente, esse mesmo contexto (2005: 56)

e simultaneamente alargando o campo referido por ela, posso dizer que no texto de Baltasar Lopes (como em qualquer romance cabo-verdiano, e não só nos textos publicados na sua época) se pretende mostrar precisamente esses contextos através da escolha do modo de utilização da língua. Como afirmei antes acerca do romance, também a linguagem de Chiquinho é híbrida, filha de um casamento do português com o crioulo, de maneira que, justamente por esse aspeto mestiço, a sua tradução oferece desde logo problemas devido à dicotomia linguística.

Diria, por analogia, que a primeira coisa que delicia os parentes de um recém-nascido é salientar e comparar as parecenças deste com a família: tem o nariz do pai, não tem a boca da mãe, tem o olhar do avô, possui as mãos da avó, etc. E o mesmo pode afirmar-se quanto ao romance cabo-verdiano: esta expressão é crioula, esta outra é portuguesa, esta é do interior de determinada ilha, aqueloutra mais urbana... mas podem ser todas ditas parecenças que remontam a uma única filiação: português e crioulo. Contudo, apenas alguém familiarizado com as duas línguas consegue estabelecer ou eliminar as parecenças linguísticas no romance.

Para fazer uma afirmação do género, parto do pressuposto que quem decide embarcar-se no mar borrascoso da tradução de um texto híbrido como Chiquinho necessita de uma forte dose de coragem e de capacidades náuticas bem sólidas para enfrentar vagas de tal elevação. Esse parece-me ser o caso dos dois tradutores, Laban e Barca, cujas versões serão objeto do meu exame. Não pretendo, porém, tratar as duas traduções de Chiquinho no seu todo, mas somente no aspeto dialógico, ou seja, o que quero decompor é a forma discursiva que achamos presente em epístolas.

Como afirmei ao início, há dois casos em que o autor precisa de recorrer à forma epistolar para mostrar o tipo de contato entre a população insular e os parentes emigrados. Dado que se trata de um romance ambientado sobretudo entre os anos 20 e 40 do século passado, o único meio de que se servia a maior parte da população cabo-verdiana era a carta, sendo muito provável que as pessoas não possuíssem ainda telefone em casa. A epístola representa assim o meio privilegiado pelo qual se fazem chegar aos familiares e conhecidos pedidos de ajuda, notícias sobre o dia a dia, comunicações vitais para a vida humana e para a da comunidade.

A primeira carta, lida em voz alta pelo narrador-protagonista, aparece no parágrafo 29 do capítulo intitulado «Infância». A missiva marca uma viragem na vida da personagem e, futuramente, no decurso do romance, pois introduz o narrador no mundo da “gente grande” e nos problemas que assolam o arquipélago. Chiquinho é chamado a ler a carta porque a pessoa a quem esta se destinava é analfabeta. Pressentindo a importância do seu conteúdo, devido ao traço negro que corta um dos ângulos superiores do envelope, um sinal de luto, portanto, Chiquinho é procurado como leitor ‘oficial’, pois o facto de ser um rapaz com alguma escolarização faz com que a vizinhança deposite nele a sua total confiança. Chiquinho é então a voz que une distâncias, a voz que liga realidades separadas pela falta e pela necessidade, e ao mesmo tempo a «máquina que matou o filho de nha Tudinha» (19886a: 105).

Reproduzo a carta no original e nas traduções oferecidas:

Minha querida irmã do meu coração Gertrudes Ana Duarte, S. Nicolau, Caleijão

Eu peguei nesta pena para fazer estas duas regras e eu desejo que estas encontrarão você numa boa saúde na companha dos meninos, igualmente meu desejo e eu graças a Deus estou bom.

Tudinha você ponha consolança na seu coração e eu desejo você uma consolança e resignação na vontade de Deus. Tudinha triste novidade que eu tenho para você é teu filho Manuel que faleceu no dia 3 de Novembro, derivado de uma máquina que pegou ele e matou na fábrica. Nós tudo ficou muito triste, coitado de Manuel era um bom moço e nós tudo tinha com ele uma boa vivência. Tudinha teu filho teve um fanoral bonito e todos amigos de Betfete acompanhou ele até no cemitério. Tudinha eu não mando você agora a mala do falicido porque conse disse que papel dele não está ainda tudo claro. Faleceu também outrum rapaz de S. Nicolau e ele não era da nossa ribeira. Tudinha eu não mando você uma lembrança porque agorinha assim não está na jeito. Tudinha eu tenho vontade de ir para Cabo Verde mas não estou na altura porque serviço está escasso. Abença que eu manda meus sobrinhos. Recomendação para todos aqueles que preguntar para mim. António Bia já está perto de ir para S. Nicolau. Uma boa consolança que eu deseja você na seu coração. Nada mais deste teu irmão

António João Duarte

(19886a: 103-4)

Ma chère soeur, chère à mon coeur Gertrudes Ana Duarte, S. Nicolau, Caleijão.

J’ai pris cette plume pour vous écrire ces deux lignes en souhaitant qu’elles vous trouveront en pleine santé ainsi que les enfants. Pour moi, grâce à Dieu, je vais bien.

Tudinha, prenez courage en votre coeur. Je vous souhaite de la consolation et d’accepter avec résignation la volonté de Dieu.

Tudinha, j’ai à vous annoncer une triste nouvelle, c’est la mort de votre fils Manuel le 3 novembre, à l’usine, à cause d’une machine qui l’a accroché et tué. Nous avons été très tristes, pauvre Manuel, c’etait un bon garçon et on s’entendait tous bien avec lui. Tudinha, ton fils a eu un bel enterrement et tous les amis de Betfete l’ont accompagné au cimetière. Tudinha, pour l’instant, je ne vous envoie pas sa valise, le consul a dit que les papiers ne sont pas tout à fait clairs. Un autre garçon de São Nicolau est aussi décédé, il n’était pas de notre région. Tudinha, je ne vous envoie pas un souvenir parce que, en ce moment, ce n’est pas possible. Tudinha, j’ai envie de rentrer au Cap Vert, mais je n’ai pas les moyens, le travail manque. J’adresse ma bénédiction à mes neveux. Mes amitiés à tous ceux qui demanderont de mes nouvelles. António Bia partira bientôt pour São Nicolau. Je vous souhaite beaucoup de courage en votre coeur.

Rien de plus de ton frére,

António João Duarte

(1990: 91-92)

Alla cara sorella del mio cuore Gertrude Ana Duarte S. Nicolau, Caleijão

Ho preso la penna per scrivere queste due righe e mi auguro che ti troveranno in buona salute in compagnia dei bambini, come per loro desidero, e io grazie a Dio sto bene.

Tudinha, devi avere tanto coraggio nel cuore e io ti auguro tanto coraggio e rassegnazione alla volontà di Dio. Tudinha ho una triste notizia da darti e che tuo figlio Manuel è deceduto il giorno 3 di novembre causato da una macchina che la preso e la ammazzato in fabbrica. Siamo restati tutti molto tristi, povero Manuel era un bravo ragazzo e tutti li volevamo bene. Tudinha tuo filho a avuto un bellissimo fonerale e tutti li amici di Betfete l’anno accompagnato al cimitero. Tudinha non ti posso mandare ancora la valigia del defunto perché il console a detto che le carte non sono ancora tutto a posto. È mancato pure un altro ragazzo di S. Nicolau che non era della nostra valle. Tudinha, ora non ti mando nessun ricordo perché con quello che è successo non sono in condizioni. Ho tanta voglia di venire a Capo Verde ma al momento non posso perché il lavoro e poco. Mando la benedizione ai miei nipoti. Saluti a tutti quelli che chiedono di me. António Bia sta per partire per S. Nicolau. Fatti tanto coraggio nel cuore. Nientaltro dal tuo caro fratello

Antonio João Duarte

(2008: 74)

 

Para um luso-falante é imediata a percepção da dissonância quanto ao teor linguístico da carta, e como veremos há exemplos bastante evidentes de interferência linguística e de sobreposição gramatical. A carta começa pela clássica introdução de missiva, a saber, o nome do destinatário precedido do apelativo que aponta o grau de familiaridade, seguido do local de residência. Em ambas as traduções esse elemento é respeitado na sua totalidade.

Se, como diz Margarida Fernandes é preciso:

perceber quem escreve, o que escreve, como escreve e para quem escreve, bem como as condições da produção e da divulgação da obra literária [...].(2004: 16),

então, também é necessário entender o tipo de relação existente entre os falantes.

O remetente da carta, António João Duarte, escreve à irmã para lhe comunicar um óbito. O seu sobrinho, filho da irmã Tudinha, falecera em consequência de um acidente de trabalho em New Bedford, cidade dos Estados Unidos da América. Porém, antes de introduzir o tema central da carta, o remetente é obrigado, digamos assim, por questões de educação, a pedir novas da saúde do seu destinatário e de quem o circunda. Vemos então que o rumo linguístico e morfológico das palavras de António João Duarte mostra a necessidade que ele tem de se exprimir em termos que respeitem as regras da composição em língua portuguesa, veiculando ao mesmo tempo o seu modo de sentir em crioulo. A dicotomia entre a forma da língua, que deve ser a portuguesa – sendo o único meio existente na altura para registar uma mensagem escrita –, e o conteúdo da mensagem, que se serve do crioulo como dispositivo primigénio de comunicação afetiva, indica que a personagem António João Duarte possui, sim, as bases elementares da escolaridade, mas estas não são suficientes para suprimir a barreira afetiva cuja superação pode ser atuada apenas pela língua materna, precisamente a que une, liga e mantém as relações interpessoais.

Por conseguinte, Baltasar Lopes cria um texto que de certa forma remete sub-reptícia e propositadamente para um meta-texto crioulo. A meu ver, tratar-se-ia de uma espécie de ‘tradução’ de significantes e significados crioulos para a língua portuguesa, tradução esta disfarçada de diegese. A dificuldade do tradutor é a de dever operar uma dupla passagem, em especial quando se debruça sobre passos deste tipo. Como salvar aquela espécie de naturalização da obra literária pretendida pelo tradutor e simultaneamente garantir-lhe o espírito da língua, o ethos mental de onde ela emerge (Sontag 2004: 41)?

Vejamos os casos. A tradução francesa de Michel Laban regulariza o desnível linguístico da carta, quer quanto ao estilo quer quanto à sintaxe francesa. O tradutor reconhece-lhe a presença do substrato crioulo sob a forma morfológica portuguesa, mas prefere evitar carregar a tradução com aquilo que poderia parecer uma inautenticidade. Ao aplicar esta regularização na tradução, não estará Laban, pelo contrário, a torná-la ‘inautêntica’?

A bem ver, António João Duarte escreve como fala, isto é, por meio de anacolutos e, como se nota logo no começo da carta, Baltasar Lopes prefere ligar os elementos da oração por vírgulas, justamente para marcar esse aspeto. Ao linearizar a sintaxe na tradução francesa, dividindo os momentos do período onde eles devem ser separados, corrigindo a pontuação onde ela deve ser corrigida, Michel Laban está a salvaguardar a legibilidade do texto tomando unicamente como ponto de fuga a fruição do leitor francês, abdicando de todo do hibridismo típico do romance. Paradoxalmente, o tradutor francês está a fazer uma espécie de plástica facial de valor linguístico à personagem António João Duarte, uniformizando-lhe as feições segundo conotações que são automaticamente aceites e partilhadas pelo leitor, encobrindo desta forma aquela brecha no muro semântico provocada pela erosão do crioulo.

Por outro lado, a tradução italiana de Vincenzo Barca toma uma direção interpretativa diversa, isto é, o tradutor parte do pressuposto de que o texto está mal redigido em língua portuguesa e por isso é necessário tornar bem clara essa característica na versão italiana. Razão pela qual, onde Michel Laban via um substrato da língua crioula que aparecia à tona do mar diegético, Vincenzo Barca vê simplesmente a demonstração de analfabetismo da personagem. Ou seja, ele pressupõe que a ideia de fundo de Baltasar Lopes é a de escrever uma carta cujo remetente é analfabeto.

Para mostrar em contraluz como a língua crioula transparece na redação da carta de António João Duarte, pedi a duas crioulófonas (Marlene Brito e Ana Josefa Cardoso, a quem agradeço) que me passassem a mensagem para o crioulo de Cabo Verde na variante da ilha de São Nicolau, utilizando para tal o ALUPEC, a saber, o Alfabeto unificado para a escrita da língua Cabo-verdiana.

Nha kerida irman di nha korason Gertrudes Ana Duarte

Saniklau, Kaleijon

N pegá n’es pena pa N fazê es dos regra y N ta dezejá ke es ta kontra bosê de saúde na konpanha de menines, igualmente é nha dezeje y min grasas a Deus N ta drete. Tudinha bosê poi konsolansa na bosê korason y N ta dezeja bosê un konsolansa y rezignason na vontade de Deus. Tudinha, triste novidade ki N tene pa bosê é bo fidje Manel ke falesê na dia 13 de Novenbre, derivóde di un makna ke pega-l y mata-l na fábrica. Nos tude feká muite triste, koitóde de Manel era un bon mosinhe, y nos tude tinha ma el un bon vivénsia. Tudinha bo fidje teve un funeral bnite y tude amige de Betfete akonpanha-l até simitére. Tudinha, N ka ta mandá bosê gorinhasim mala de faliside, purke konse fala ke ses papel ka sta ainda tude klóre. Falesê tanbé outrun rapazinhe de Saniklau y el ka era de nos ribera. Tudinha, N ka ta manda bosê un lenbransa purke gorinhasim N ka ta na jête. Tudinha N ten vontade de bá pa Kabe Verde má N ka ta pudê, purke servise sta eskóse. Abensa ki N ta manda nhas subrinhe. Rekomendasau pa tude akeles ke ta pergunta pa min. Antone Bia já sta perte de bá pa Saniklau. N ta dezejá bosê un bon konsolansa na bosê korason. Nada más d’ es bo irmon

António João Duarte

Desta versão podemos retirar algumas conclusões que nos farão ver que a língua cabo-verdiana se acha velada pelo português. Por exemplo, peguemos primeiro nos termos «companha» e «consolança» utilizados na carta, que são vocábulos registados no dicionário do crioulo cabo-verdiano coligido por Jürgen Lang (2002: 366 e p. 334), o primeiro dos quais pertencente ao português antigo. Na tradução francesa escolhe-se simplesmente eliminá-lo, cortando a oração em dois e recriando um discurso linearizado. A tradução italiana, pelo contrário, mantém o termo mas decide substituí-lo pelo seu referente na língua portuguesa, isto é, «companhia», e é este o vocábulo que vingará depois na versão italiana.

Como se vê, trata-se de duas soluções completamente diferentes. O segundo termo, «consolança», é traduzido por ambos por «coragem», mas dado que ele ocorre duas vezes de seguida, só o tradutor francês optou por modificar a segunda ocorrência pelo referente «consolação». Se, ao invés, prestarmos atenção aos termos «vivência», «fanoral», «falicido», «conse», «outrum» e «preguntar» verificamos novamente que o tradutor francês os traduz para a língua francesa tomando sempre como princípio o de não perturbar a leitura com sobressaltos causados pelo estranho. O tradutor italiano entende que a expressão «fanoral» deve ser considerada um erro de ortografia do remetente, razão pela qual o traduz também como erro na sua língua («fonerale»).

Até aqui falámos apenas do léxico crioulo subjacente ao texto e vimos como esse mesmo léxico foi traduzido nas respetivas línguas. Agora é preciso mostrar de que forma as orações que veiculam um substrato crioulo foram traduzidas para as línguas em análise, isto é, se foram reconhecidas como tais.

A seguinte frase, «Nós tudo ficou muito triste, coitado de Manuel era um bom moço e nós tudo tinha com ele uma boa vivência», é um dos exemplos que tenho em mente para defender a minha tese. Apesar de soar agramatical para um leitor luso-falante, esta oração permite-nos sustentar precisamente que António João Duarte pensa em crioulo quando a redige. A frase que cito transcrita em crioulo cabo-verdiano faz ver que há uma perfeita coincidência de termos e de estrutura semântica relativamente à frase criada por Baltasar Lopes: «Nos tude feká muite triste, koitóde de Manel era un bon mosinhe, y nos tude tinha ma el un bon vivénsia». Em cada termo da personagem António João Duarte encontramos o reflexo especular na metalinguagem, a saber, o crioulo. Toda a frase se manifesta como a materialização de um pensamento linguístico que se serve de outra estrutura. O uso dos pronomes clíticos, por exemplo, que em português é preferido em substituição dos pronomes pessoais, no crioulo cabo-verdiano é aplicado mantendo-se a primazia pelo uso dos pronomes tónicos e não dos átonos, e sempre por ênclise. Isto pode ser visto claramente na expressão «[...] todos amigos de Betfete acompanhou ele [...]». A gramática portuguesa considera um erro manter o pronome pessoal sujeito depois do verbo e substitui-o pelo clítico “o”, dado tratar-se de um pronome de complemento direto (o filho de Tudinha). Teríamos assim “acompanharam-no”, pois o sujeito é plural (todos os amigos de Betfete). Portanto, ler a frase pelos olhos de um luso-falante é corrigi-la com as lentes de uma gramática que não lhe pertence. O crioulo cabo-verdiano não distingue as pessoas do verbo, usando para isso os pronomes pessoais que servem o objetivo de tornar explícito o sujeito. Por esse motivo António João Duarte, que conhece uns rudimentos de gramática portuguesa, que sabe que necessita de temporalizar o verbo, escolhe usar a forma temporal, o pretérito perfeito simples, mas mantê-la no impessoal, isto é, na terceira pessoa do singular, como se desse modo estivesse a respeitar a sua gramática interna, ditada pela sua língua materna, a que lhe diz que os verbos não carecem de pessoas. Por essa razão, a versão crioula que propõe a falante de crioulo cabo-verdiano, «tude amige de Betfete  akonpanha-l», não pode deixar de nos soar como um texto já conhecido. Se a sobrepusermos à frase de António João Duarte obtemos um processo de desenho sobre esquisso, em que uma linguagem remete para a outra e ambas coincidem perfeitamente. O mesmo poderá ser feito com outras partes da carta que soam, erroneamente, a traços agramaticais quanto à norma do português.

Como exemplo ainda, transcrevo um breve trecho de carta de uma mãe, nascida nos anos Trinta, a uma filha que vive distante dela, para mostrar que os crioulófonos que tiveram contato breve com a escolaridade portuguesa reconhecem apenas a estrutura gramatical escrita da norma portuguesa, mas fazem uso mental da língua materna como estrutura enformadora da mensagem que pretendem transmitir: «[...] também recebemos livro que mandar-nos, ficamos contente e agradeço, peço a Deus para dar-te vida e saúde [...]». Se passarmos este curto trecho para crioulo cabo-verdiano teremos: «[...] tanbe nu recebe livru ki bu manda-nu, nu fika kontenti y N ta gardise, N ta pidi Diós pa da-bu vida y saúdi [...]». Ora isso mostra-nos que a experiência linguística de António João Duarte, personagem inventada por Baltasar Lopes, e a da remetente do excerto que citámos são a mesma, ou seja, ambos se servem inconscientemente, talvez, da língua materna como estrutura referencial para o ato da escrita.

Como se disse antes, é fácil ver na tradução oferecida por Michel Laban uma reescrita do texto de António João Duarte. Um labor de refazimento do texto que não deve destoar. Quanto ao trabalho de Vincenzo Barca, o que vemos é a reprodução do texto com vários erros de gramática, dando assim ao leitor a ideia de que o remetente desconhece a língua em que escreve. Veja-se, por exemplo, a versão da frase que acabámos de analisar: «tutti li amici di Betfete l’anno accompagnato». Por conseguinte, no pano de tradução tecido por Barca, o que vemos são uma série de remendos, de botões de cores e formas diferentes que pretendem dar ao consumidor uma ideia da reciclagem da linguagem. Encontramo-nos, portanto, face a duas propostas radicalmente diferentes de leitura de um mesmo texto.

Se a tese que produzo for aceite, o problema da tradução deste tipo de mensagens torna-se um grande pedregulho de Sísifo, pois nos coloca numa situação extremamente delicada.

Não há dúvida de que a tradução francesa representa uma traição aberta do texto original, todavia uma traição que prefere eliminar o caos babélico presente no texto. O ponto de partida de Laban (2002: 169) é que a própria narração de Chiquinho se faz numa língua artificial, pois, sempre segundo ele, ninguém se exprime assim em situação normal. E ao partir desta premissa, ele pode conceder-se o direito de passar um descolorante sobre o pano textual originário e voltar a pintá-lo com as cores que serão reconhecidas pelos leitores da língua francesa, agindo simultaneamente como uma espécie de apicultor, que sabe quais as cores que atraem as abelhas que melhor sabem apreciar o pólen que se lhes oferece.

Quanto à tradução italiana o que verificámos, ao longo deste pequeno excurso, foi uma leitura do texto que partia do pressuposto de que o autor decidira apresentar propositadamente um desvio agramatical da norma portuguesa. Por conseguinte, o produto final é o resultado dessa premissa, ou seja, um texto escrito também com um desvio agramatical da norma italiana.

Como agir em casos como estes? Decerto a linha entre traduzir e trair é muito subtil e a fronteira, tornando-se invisível, só pode ser chamada em causa por um único agente, o tradutor. A perfeição objetiva de uma tradução é algo que somente um génio da palavra pode aspirar a tocar, enquanto que ao tradutor cabe a humana tarefa de sujar as mãos e de admitir os seus limites. E se conseguir de alguma forma tocar o espírito do autor, roçar-lhe o texto através da letra, então poderemos dizer que por um modo qualquer ele conseguiu contemplar a ideia do texto.

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About the author(s)

Maria da Graça Gomes de Pina has achieved a degree in Philosophy at the Universidade de Lisboa. She is language teaching assistant at the Università degli studi di Napoli “l’Orientale”, teaching portuguese. In 2008, she then achieved her PhD at this same University.

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Edited by: Rafael Lozano Miralles, Pietro Taravacci, Antonella Cancellier & Pilar Capanaga
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